ANA DORZIAT
Partindo do princípio de que o modo de designar as pessoas reflete uma visão sobre elas e, em muitos casos, conceções preconceituosas frente a determinados fenômenos, considero importante explicitar meu ponto de vista sobre os termos usados por profissionais especializados, principalmente os da educação de surdos, para se referirem às pessoas que, por diferentes motivos, não ouvem.
Para isso, procurei desenvolver uma reflexão sobre o uso dos termos deficiente auditivo e surdo, tal como é encontrado na literatura especializada, deixando transparecer subjacente a este último termo uma conceção sociocultural do fenômeno.
O termo deficiente auditivo tem sido largamente utilizado por profissionais ligados à educação dos surdos. Behares (1993) critica o uso desta expressão, porque considera que ela reflete uma visão médico-organicista. Nela, o surdo é visto como portador de uma patologia localizada, uma deficiência que precisa ser tratada, para que seus efeitos sejam debelados. O grau de perda auditiva, indicado pelo diagnóstico médico e/ou paramédico, é decisivo no encaminhamento educacional e se configura como o mais importante indicador para a previsão do desenvolvimento de linguagem.
Para exemplificar o que foi dito, apresentarei de forma resumida a classificação de deficiente auditivo (DA), as características previstas e o atendimento correspondente preconizados por Couto (1985:12):
DA Leve (com perda de 20 a 40 dB): são pessoas consideradas desatentas e distraídas. Por não perceberem todos os sons da palavra principalmente a voz fraca e distante, olham sempre para o rosto de quem está falando. Costumam pedir para repetir as informações. Essas pessoas conseguem adquirir linguagem, naturalmente. Em geral, chegam a escola, podendo concluir os estudos sem demonstrar sua deficiência. Algumas demoram um pouco mais para falar corretamente, ou falam trocando alguns fonemas. Outras falam bem, mas quando começam o aprendizado da leitura e escrita, fazem confusão entre as letras que têm sons semelhantes, trocando-as. O atendimento médico indicado é o tratamento clínico ou cirúrgico. Se houver dificuldades articulatórias, essas pessoas devem ser atendidas por uma fonoaudiólogo;
DA Média ou Moderada (com perda de40 a70 dB):para as pessoas compreenderem a fala, é necessário uma voz forte, principalmente em ambientes ruidosos. Apresentam atraso de linguagem e alterações articulatórias. As dificuldades na compreensão da fala são mais notadas quando as frases são complexas, envolvem expressões abstratas e aparecem artigos, pronomes, conjunções etc. Observam-se também dificuldades em compreensão de terminações verbais e as concordância de gênero e de número do substantivo e adjetivo. Geralmente, essas pessoas precisam de apoio visual para o entendimento da mensagem. Diante disso, os atendimentos indicados são: clínico, cirúrgico, fonoaudiólogo e pedagógico especializado. Sugere-se, adicionalmente, a frequência à escola regular com acompanhamento e suporte anterior de atendimento especializado e de prótese individual;
DA Severa (com perda de 70 a 90 dB):as pessoas só percebem voz muito forte e alguns ruídos do ambiente familiar. Decorrente disso, a compreensão verbal depende do apoio visual e da observação do contexto em que se desenvolve a comunicação. A linguagem só é adquirida no seu próprio ambiente com orientação. Nesse caso, recomenda-se o uso de prótese individual. Além disso, o atendimento indicado é em escola ou classe especializada, para que a linguagem básica de compreensão e de expressão sejam adquiridas. A alfabetização pode ser realizada antes de ingressar em classe comum, onde devem permanecer com atendimento especializado paralelo;
DA Profunda (perda auditiva superior a 90 dB): O fato de não possuírem informações auditiva impede as pessoas identificarem a voz humana. Não adquirem linguagem naturalmente no ambiente familiar e não adquirem fala para se comunicarem, devido à ausência de modelo. Aconselha-se o uso de prótese individual. O atendimento indicado deve ocorrer na escola ou em classe especial, com programas de aproveitamento dos restos auditivos e de aprendizagem de leitura labial e da fala. Há previsão de escolaridade mais prolongada.
Pelo exposto, pode-se notar que, numa visão clínica, os padrões classificatórios não são apenas indícios. Constituem-se em mais importantes indicadores para a previsão de desenvolvimento da criança surda, tanto em termos linguísticos como educacionais. São negligenciados, ou colocados em segundo plano, outros fatores além do tipo e grau de perda auditiva, como os apontados por Cruickshank e Jonhson (1982). Esses autores consideram também a idade em que o déficit auditivo foi instalado, se antes ou depois da aquisição da linguagem (pré-linguístico ou pós-linguístico, respetivamente). Para eles, as estratégias de ensino dependem da época em que ocorreu a perda auditiva, porque elas se voltarão para a aquisição ou para a conservação dos processos linguísticos. Esses autores referem-se a outros fatores que também poderiam afetar o processo de aprendizagem de pessoas surdas, como a inteligência e a áudio-habilidade (capacidade auditiva de aplicar significado ao som), operíodo em que os pais reconhecem a perda auditiva, o envolvimento dos pais na educação das crianças, os problemas físicos associados, entre outros.
Embora os aspectos médico, individual e familiar ampliem o universo de análise sobre o fenômeno, Behares (1993) chama a atenção para a necessidade de vê-los sob uma perspectiva sóciocultural. Ele relata como as investigações atuais têm chamado a atenção para a multideterminação da surdez e para a adequação do emprego do termo surdo, uma vez que é esta a expressão utilizada pelo surdo, para se referir a si mesmo e aos seus iguais. Na perspectiva de Behares, é muito importante considerar que o surdo difere do ouvinte, não apenas porque não ouve, mas porque desenvolve potencialidades psicoculturais próprias.
A aceitação do termo surdo como mais apropriado (Sanchez, 1990 e Ferreira Brito, 1993) representa, também, uma tentativa de minimizar o processo de estigmatização dessas pessoas, processo este amplamente discutido por Goffman (1988), através do qual a audiência reduz o indivíduo ao atributo gerador do descrédito social. A expressão surdo, como vem sendo empregada, tem favorecido identificar a pessoa como diferente, sendo esta diferença particularizada por ser decisiva para o desempenho.
Neste momento, é importante esclarecer que a limitação auditiva é inegável como um dos fatores para a identificação das diferenças individuais. É igualmente inegável, que a necessidade de aquisição de um sistema linguístico próprio (gestual-visual), acarreta consequências de ordem social, emocional e psicológica que vão além da perda auditiva. Os surdos são possuidores de nomes próprios que os identificam como pessoas pertencentes à determinada classe social, determinado gênero, à determinada religião etc. mas, por apresentarem uma forma particular de apreensão de mundo e de externalização, devem ser identificados e designados como grupo.
O uso da expressão surdo, neste sentido, revela uma amplitude social que situa a perda auditiva apenas como um fator, aos níveis médico e terapêutico, no contexto de vida da pessoa surda, sem ocupar uma posição tão significativa para o seu desenvolvimento individual e grupal.
O emprego do termo deficiente auditivo, ao contrário, tem coincidido com a utilização de procedimentos que visam ajustar os surdos aos padrões linguísticos mais aceitos e valorizados na sociedade, envolvendo tratamentos e/ou atendimentos sistemáticos de fala oral. Os estudos que usam a referência surdo têm procurado abrir um espaço social para essas pessoas, respeitando suas especificidades. Buscam a identidade social dessas pessoas entre os seus, sua legitimação como comunidade linguística diferenciada.
Esta conceção de surdez em que fundamento as minhas reflexões, questionamentos e análises vem ao encontro da visão de educação que defendo, de um processo que possibilita a reflexão crítica sobre a realidade social e sobre as regras pré-estabelecidas. A escola ideal é, neste paradigma, aquela que sabe lidar com as diferenças, respeita-as, não de maneira condescendente, mas entendendo que é preciso saber lidar com racionalidades distintas, e, desse modo, seja capaz de contribuir para a construção de sociedades mais justas e harmoniosas.
O uso do termo está, também, circunscrito às pessoas que, por possuírem um déficit auditivo, apresentam dificuldades em processar informações lingüísticas pela vias de acesso mais comum e criam, por isso, identidade linguística e cultural própria, como sugerido por Sacks (1990). A maioria dos pesquisadores definem essas pessoas como surdos severos ou profundos. Pelo exposto anteriormente, não concordo com a identificação dos surdos circunscrito a padrões classificatórios.
Ao invés disso, acredito que é preciso considerar que as dificuldades em processar informações linguísticas pela via de acesso mais comum (a audição) têm negado aos surdos um ensino sistemático, por um longo período da história. O ensino exige, além de recursos educacionais complementares, atenção especial à sua diferença, concretizada com o uso da língua de sinais em todo o âmbito escolar e, ao mesmo tempo, requer a preservação e o desvelamento de formas próprias de entender o mundo da cultura surda.
Portanto, mesmo entendendo que a simples mudança de termos nem sempre implique em mudança de conceção, alerto para a necessidade de se dar mais atenção para o conteúdo ideológico das palavras, porque elas podem ser um indicador importante para o entendimento do homem e da realidade que o cerca.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEHARES, Luis Ernesto- Nuevas corrientes en la education del sordo: de los enfoques clínicos a los culturales – Cadernos de Educação – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 1993.
BOUVET, Danielle – The path to linguage: bilingual education for children – Philadélphia: Multilingual Matters, 1987
COUTO, Álpia Ferreira – Conceito de Deficiência auditiva – In: A.F. Couto, A.M. Costa et all – Como compreender o deficiente auditivo – Rio de Janeiro: Rotary Clube do Rio de Janeiro. Comissão de Assistência ao Excepcional: EXPED, Expansão Editorial, 1985.
CRUICKSHANK, William. M. e JOHNSON, G. Orville. – A educação da criança e do jovem excepcional – tradução Leonel Vallandro, 2 ed., Porto Alegre: Globo, 1982.
FERREIRA BRITO, Lucinda – Integração social & educação de surdos – Rio de Janeiro: Babel editora, 1993.
GOFFMAN, E. –Estigma – Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
SACKS, Oliver- Vendo vozes – Rio de Janeiro: Imago, 1990.
SANCHEZ, Carlos G. M. – La increible y triste historia de la sordera – Caracas: CEPROSORD, 1990.
ANA DORZIAT
Doutoranda em Educação (UFSCar)
Mestre em Educação Especial (UFSCar)
Professora do Departamento de Educação – Campus II (UFPB)