PARA MEMÓRIA FUTURA
VER AQUI A CARTA-ABERTA ÀO SENHOR JOÃO GOMES
CARTA ABERTA (Resposta a um e‐mail da Federação Mundial das Línguas Gestuais assinado pelo senhor João Gomes, Presidente da mesma)
Caro senhor João Gomes,
O que diz sobre o ensino das línguas gestuais e as línguas gestuais não tem quaisquer fundamentos científicos e é, no mínimo difamatório do bom nome da comunidade surda e das instituições que a representam. Centremo‐nos no caso da Língua Gestual Portuguesa. O senhor afirma:
“Gostaríamos de lembrar que existe uma única língua portuguesa em que todos os portugueses são ensinados e todos falamos uma única língua. Então porque quando é lecionada a LGP os formadores têm gestos diferentes os intérpretes de LGP falam cada um à sua maneira.”
Em primeiro lugar, parece‐me que está a confundir o ensino da escrita, que sim, no português obedece a uma convenção, com a língua. A língua portuguesa é só uma, mas tem variedades dialetais, ou seja, todos reconhecemos que há “falares” distintos quer na parte fonológica, dita pronúncia, quer na parte vocabular. O mesmo se passa com a Língua Gestual Portuguesa. Há uma riqueza imensa de arcaísmos e regionalismos que devem ser preservados, como aliás, se faz para o ensino do português.
Basta‐lhe consultar o Programa Curricular de Português para os ensinos básico e secundário que verá como se insiste no ensino da história da língua e nas suas variedades regionais. Assim, os “gestos diferentes” podem ser fruto de regionalismos, válidos e existentes em qualquer língua oral ou gestual, ou, pura e simplesmente, atestam a polissemia, ou seja, um mesmo conceito pode ter gestos distintos. O mesmo se passa nas línguas orais. E a riqueza da variedade da língua gestual portuguesa é ensinada nas escolas, difundida pela comunidade e conta no Programa Curricular para o Ensino da LGP da responsabilidade do Ministério da Educação.
Todas as línguas, orais e gestuais, são dinâmicas e estão em constante mudança por isso, quando diz,
“Que um surdo de 10 anos, um surdo de 20 anos, um surdo de 30 anos, um surdo de 40 anos, um surdo de mais de 50 anos não se entendem, já não falo de um surdo de 80 anos ou mais nem sequer reconhecem a própria língua. Muitos idosos quando conhecem surdos jovens até perguntar se esses surdos são estrangeiros!?! Então onde está a veracidade e os interesses da língua da comunidade surda?”
É possível que sejam os novos gestos aplicados aos novos conceitos da sociedade sempre em mudança que causam esse “desentendimento”. O senhor veja se um jovem ouvinte de 10 ou 20 anos não tem palavras diferentes para se exprimirem? Tem. Chama‐se variedade diafásica, ou seja, o registo de língua varia com a idade de quem a usa. Além disso, como membro ativo e participante da comunidade surda, vejo diariamente jovens e idosos a conversar em LGP e não notei esse desentendimento tão abissal. Mas reitero: se um jovem ouvinte de 20 anos conversar com idoso de 80 em português de certeza haverá termos que ambos não conhecem pois as suas vivências são distintas.
Além disso, também influencia o uso de qualquer língua, oral e gestual, a formação das pessoas. Certamente que se um surdo estudante universitário gestual o gesto de querem para um idoso de 80 anos que não tem formação académica, ele não o entenderá. O mesmo, caro senhor João Gomes, se aplica ao português.
Recordo‐lhe, também, que o ensino da escrita das línguas gestuais está presente nos Programas Curriculares e tem investigação neste domínio. Porque a língua, senhor João Gomes, seja a portuguesa ou a língua gestual portuguesa, é rica e tem diversidade, a escrita é que é una. Tudo o resto que tanto o afronta, senhor João Gomes, é natural a qualquer língua humana, oral ou gestual: riqueza, dinamismo, variedade.
Em segundo lugar, quando o senhor afirma
“Se defendem a comunidade surda, então como explicam as suas interpretações dos intérpretes que ocupam as estações de televisões. Se defendem a comunidade deveriam saber que há reclamações na comunidade surda há muito tempo. Não só nas televisões mas também nos tribunais, nos gabinetes dos advogados, outros serviços públicos. Esta federação mundial das línguas gestuais existe e deu conhecimento às entidades oficiais, além disso tentou dialogar com as diversas associações de surdos no intuito de encontrar formas de resolver os vários problemas que comunidade surda enfrenta neste momento. Quem não deve não teme!”
Pergunto‐lhe: qual é a sua formação para avaliar o registo de língua de intérpretes? As entidades oficiais, associações de surdos e a Federação Portuguesa das Associações de Surdos, têm legitimidade oficial para o fazerem. São instituições reconhecidas e cujos membros foram eleitos pela comunidade surda. Pergunto‐lhe também qual a sua competência para validar ou não um discurso gestual?
Por último, recordo‐lhe que há Programas Curriculares para o Ensino da LGP emanados pelo Governo Português e que, no presente momento, há também entidades oficiais, nomeadamente a Federação Portuguesa das Associações de Surdos e o Núcleo para a Língua Gestual Portuguesa que, sob supervisão do Instituto Nacional de Reabilitação, procuram compreender e estudar as metodologias didáticas no ensino da Língua Gestual Portuguesa por forma a preservá‐la e protege‐la, tal como previsto na Constituição da Republica Portuguesa. Essas pessoas têm formação superior em ensino de LGP, em linguística, educação de surdos e interpretação. Além disso estão também presentes nativos surdos de LGP.
Quais são as competências certificadas dos técnicos da federação mundial de línguas gestuais? E o senhor que tanto advoga defender a comunidade surda, a que comunidade se refere uma vez que se revolta contra todas as associações de surdos, de professores de língua gestual, de intérpretes e contra a Federação representativa da Comunidade Surda?
Aconselho‐a a preparar melhor os seus argumentos quando fala de línguas pois carece de validade científica o que afirma. Todos somos livres de opinar, mas não temos o direito de duvidar de quem tem competências comprovadas por documentos e atos.
Não basta “ter conhecimentos de LGP”. Se não concorda com algo, documente‐se e apresente argumentos válidos ao invés de discursos inflamados em prol de uma comunidade que o senhor ataca.
Finalmente… que esta minha missiva provoque reflexão.
Melhores cumprimentos,
Armando Gabriel Teixeira Baltazar
(Cidadão Surdo, Licenciado na Docência da LGP, Medalha de Mérito Internacional da Federação Mundial de Surdos, Responsável da
Formação Profissional e de LGP na ASPorto, Coordenador da Equipa criadora da Escola Virtual de LGP)