Jornal da APABB (Brasil)
Sílvia Estrela – 11 de Fevereiro de 2004
A família descobre a comunicação com os filhos surdos
A comunicação é um dos fatores principais de integração do ser humano, significa participação, convivência, socialização. A família é a base mais importante desse processo, é nela que se inicia a transformação de um organismo biológico em ser humano.
Para isso acontecer é necessário uma linguagem comum, desenvolvida naturalmente numa família de ouvintes, mas grande meta a ser superada quando existe um portador de deficiência auditiva.
A surdez é invisível, não é compreendida pelos ouvintes, mas tem uma interferência enorme no desenvolvimento social, educacional e emocional do surdo. Segundo especialistas, é um dos problemas de saúde mais ignorados do mundo, por falta de atenção e de prevenção.
A surdez, historicamente, provoca discussões. Seu significado social está ligado à ausência da linguagem comum ao meio no qual vivemos, ou seja, a língua oral. Por muitos séculos, os portadores de surdez foram ignorados socialmente, chegando-se a acreditar, em tempos remotos, que eles não pensassem.
A preocupação com a educação dos surdos só começou por volta do século XVI, quando se reconheceu que eles deveriam ter uma língua própria, baseada em sinais, além da língua escrita.
Entretanto, parte dos educadores, legisladores e Igreja começaram a questionar essa língua, pois acreditavam que os surdos tinham que falar para serem integrados na sociedade. Em 1880, por decisão do famoso Congresso de Milão, os sinais ficaram proibidos na educação dos portadores de deficiência auditiva. Isso durou até a década de 60, recentemente, portanto.
Silvia Sabanovaite, representante em São Paulo da FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos), portadora da deficiência, estudou nessa época no “Instituto Educacional Teobaldo”, escola especial que hoje é a Divisão dedicada a distúrbios da comunicação da PUC de São Paulo, a famosa DERDIC. “A gente não podia fazer gestos e nem falar com as mãos, apanhava com a régua”, diz ela.
A Língua de Sinais, Silvia veio a conhecer alguns anos depois, numa associação de surdos, onde também se sentiu rejeitada. “Eles não aceitavam uma pessoa com o mesmo problema e que falava bem. Era quase pecado eu não conhecer a Língua de Sinais”, conta ela. A aceitação só veio quando Silvia se dispôs a ajudar a associação com sua capacidade em troca do ensino da nova língua. “Aí eu aprendi como era importante essa comunicação entre surdos”, diz a representante da FENEIS.
Oralismo ou Língua de Sinais?
Existem outras filosofias educacionais, como o Oralismo, que só se preocupa com o ensino da língua oral, através de vários métodos como verbotonal, leitura labial e outros. Segundo a FENEIS, as pessoas que seguem esta filosofia no Brasil só ensinam a língua portuguesa e geralmente não aceitam a Língua de Sinais.
A doutora em linguística, Maria Cristina Pereira, assessora da DERDIC, não concorda com a priorização do Oralismo. “O grande problema para aprender a linguagem oral é justamente porque ela enfatiza o órgão lesado. Para o surdo, uma língua visual é muito mais acessível, e quando ele tem contato com a Língua de Sinais percebe que esta lhe dá um alcance muito maior para entender o mundo”.
Além disso, o surdo cria naturalmente uma língua gestual, acredita Cristina. “Nenhuma língua é limitada, nem a de sinais, que tem uma gramática própria, uma forma de organizar os elementos e construir novas palavras. O limite é nosso.” Os relatos que a linguista recebe dos alunos surdos dizem da sua identificação com a Língua de Sinais, com a qual podem expressar tudo o que sentem, e facilitar o aprendizado das outras formas de comunicação. “A linguagem oral tem que ser uma forma para eles se comunicarem com o mundo lá fora. Para mim, isto só pode acontecer realmente quando se tem uma língua. É a maneira como eu vou organizar meu pensamento, como eu sonho, como penso. Tudo passa pela língua”.
Na DERDIC, o curso de Língua de Sinais é oferecido para a família, que é orientada a usá-la, mas a actuação dos profissionais tem limites, explica a doutora. “Eu entendo que a família queira que o filho fale, porque ninguém está preparado para ter um filho portador de deficiência. Quando a família percebe a importância da Língua de Sinais para o filho e se propõe a aprendê-la, o ganho qualitativo para esse aluno é incrível, porque a escola nunca vai substituir a família”.
Isto foi o que aconteceu na família de Rosilene de Fátima Novaes, dirigente do Centro Verbotonal Minas Gerais. Seu filho Rafael nasceu em 1983 e, no oitavo mês, perceberam que a luz o acordava, mas não o volume da televisão. O diagnóstico dado pelo “otorrino” foi surdez profunda e discreta paralisia cerebral. Os pais procuraram então o Centro Verbotonal e logo assumiram sua direcção.
“O método puramente oralista usado então nos causava uma grande angústia, mas pensávamos que era para o bem dele”, conta Rosilene. “Hoje eu acho que a grande perda de tempo de pais ouvintes de filhos surdos é esta ansiedade de ter que aprender a falar, sendo que o mais importante é entrarmos neste mundo tão silencioso e rico”.
Em 1997, o Centro Verbotonal fez uma parceria com a FENEIS e começaram um trabalho bilingue. “Foi um momento muito rico, perceber naqueles rostinhos, que só repetiam palavras ensinadas, a descoberta do sentido da fala”. Rosilene também fez o curso de Libras (Língua Brasileira de Sinais) e descobriu que podia comunicar-se efetivamente com seu filho, saber o que ele pensa a respeito das coisas.
” E, por incrível que pareça, a fala do Rafael aumentou muito e com uma grande diferença, é uma fala entendida. Essa comunicação nos abriu uma porta para o mundo dos surdos, um mundo cheio de riquezas que estamos descobrindo”.
Superando a deficiência invisível
O caminho tortuoso que Nadirce Izidio de Oliveira, sócia fundadora da Apabb, até encontrar atendimento correto para seu filho, Ricardo Izidio de Oliveira, portador de deficiência auditiva, revela o quanto a nossa formação, inclusive a médica, está distante de reconhecermos as deficiências. Nadirce percebeu que o comportamento de seu filho era diferente, quando o menino tinha 1 ano e meio, mas o médico “otorrino” consultado disse que não era nada, que ela voltasse dali a três anos. A primeira fonoaudióloga consultada também foi um desastre, e só quando o filho tinha 4 anos encontraram o atendimento adequado.
Hoje Ricardo está com 22 anos, trabalha na área de processamento de dados da Unimed, profissão que ele aprendeu na Escola Alvares Penteado, depois de ter recebido o ensino fundamental na DERDIC. Tinha 8 anos quando percebeu que era a única pessoa da família a usar aparelho auditivo (Ricardo possui um resíduo de audição), e teve a explicação que pediu. “Meus pais sempre me apoiaram, para que eu pudesse obter o melhor desenvolvimento possível, embora não possuam o domínio da Língua de Sinais”, diz Ricardo. “Uma de minhas irmãs, a Taís, está estudando fonoaudiologia e um dos motivos para a escolha foi a vivência com o meu caso”.
Thaluana dos Santos Nova, 6 anos, filha de Augusto da Nova e de Carmelina P. Santos Nova, do Núcleo São Paulo da Apabb, vem sendo educada no oralismo, pelo método verbotonal. O pai de Thaluana não se cansa de pesquisar o assunto, desde que descobriram a deficiência da filha, com 1 ano e 8 meses de idade, pois seu objetivo é que a filha aprenda a falar para melhor se integrar socialmente.
“O pai deve ser um ‘fono’ particular do filho, e se trabalhar diariamente, ele vai evoluir”, diz Augusto, que utiliza também o método Sylvestre, baseado na vibração das cordas vocais. Hoje, Thaluana já sabe todas as letras e está sendo alfabetizada.
A deficiência auditiva de Guilherme C. Vieira, hoje com 8 anos, foi constatada nos primeiros meses de vida, pela mãe, que vivia “de olho” no nenê, pois tivera anóxia de parto. “Sua vida vai ser uma luta daqui prá frente, foi o que me disse o otorrino”, recorda Elizabeth R. S. Vieira, sua mãe. A família morava em Araras, interior de São Paulo, e a primeira orientação fonoaudiológica que tiveram os levou ao Oralismo. Quando Guilherme tinha 6 anos perceberam que aquilo era insuficiente para o filho.
Procurando novos caminhos, descobriram com uma psicóloga que “é frustrante para o deficiente auditivo não conseguir falar ou ouvir, como seria frustrante para o cego se o obrigassem a enxergar ou o paraplégico andar sem auxílio”, conta a mãe. “Foi então que começamos a estudar Libras (Língua Brasileira de Sinais) e descobrimos outro lado da moeda. O nosso filho ficou mais calmo, mais tranqüilo, consegue se expressar melhor, contar o que aconteceu na escola, o que assistiu na televisão, enfim agora ele é mais feliz. A família ainda tropeça em alguns sinais, mas ele sabe que é amado por todos”.